´São dias terríveis da Covid-19, você fica sequelado por conta da medicação´

Antônio Carlos Rabat
Reprodução

Antônio Carlos Rabat, 59 anos, é um dos médicos mais requisitados de Ilhéus. Além da competência profissional reconhecida ele traz no currículo a marca de um profissional tranquilo, sorridente, carinhoso e atencioso com o paciente. É respeitado e querido por tudo isso.

No dia 17 de abril ele chegou em casa depois de mais um cansativo plantão médico. Sentou-se com a esposa e os dois filhos para assistir TV. Foi quando a esposa, Olívia, percebeu que ele apresentava um quadro febril.

Informado, imediatamente ele decidiu se isolar no quarto, considerando que, ao atuar no hospital de referência da Covid-19 em Ilhéus, poderia ter adquirido a doença. Foram sete dias assim, tomando esses cuidados, quando passou a sentir um certo desconforto respiratório.

O primeiro exame para a Covid-19 deu negativo. Os sintomas, entretanto, continuavam. Uma tomografia mostrou, na sequência, um sério comprometimento dos pulmões e a internação foi imediata.

Nem, como também é conhecido, estava doente. Era grave. Depois disso, foram semanas lutando pela vida. Ele ainda se recupera emocionalmente de tudo que passou. Até aqui não havia tornado público seu drama, a mesma experiência por que passa um número significativo de pessoas nos leitos da UTI, em estado grave por conta desta terrível doença.

Aceitou falar com exclusividade para o Jornal Bahia Online e para o editor Maurício Maron, muito mais pela amizade pessoal que os dois têm e pelo fato de que, neste momento, sua experiência vitoriosa na luta contra a Covid-19 pode levar uma espécie de conforto e esperança para muitos familiares de quem passa por este mesmo drama.

Antônio Carlos Rabat nasceu em Ilhéus. Formou-se em Medicina em 1985 pela Faculdade de Medicina de Campos, Rio de Janeiro. Fez residência em Cirurgia Geral no Hospital Miguel Couto, também no Rio, e retornou para Ilhéus em 1989.

É membro associado do Colégio Brasileiro de Cirurgiões e efetivo da Sociedade Brasileira de Cancerologia. Também é titular da Sociedade de Videolaparoscopia. Casado, dois filhos, doutor Rabat exerce a arte de curar. Mas nesta entrevista exclusiva ao JBO ele fala menos do médico e mais da experiência de ter sido paciente de uma doença que já mudou a história da saúde pública do mundo no século 21.

A entrevista é imperdível.

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Como foi que você começou a suspeitar que estava com Covid-19?

Primeiro preciso uma coisa. Agradecer a Deus a oportunidade de poder te responder a esta entrevista. Aos amigos médicos e profissionais da saúde que cuidaram de mim e às orações dos amigos. Tudo isso foi fundamental neste momento da minha vida. Eu estava assistindo TV em casa, com minha esposa, e ela identificou que eu estava com febre. Os meus dois filhos que moram em Salvador já estavam aqui em casa e eu estava em família. Me isolei no quarto e fiquei isolado durante sete dias. Neste período fiz o protocolo da época: Hidroxicloroquina, azitromicina e dipirona para a febre. Comecei a isolar no dia 17 de abril e no sétimo dia comecei a sentir um desconforto respiratório. Não sentia mais nada. Era febre e um desconforto respiratório apenas.

Ligou o sinal de alerta ainda mais...

... aí fui fazer uma tomografia. Na tomografia já fiquei internado no CTI, por que deu uma imagem extremamente complicada. O diagnóstico de Covid-19 não foi confirmado por que o primeiro exame que fiz o Swab, provavelmente estava fora da janela e deu negativo. Mas como a imagem da tomografia era complicada e àquela época, sete dias de febre, era uma coisa que chamava atenção, fiquei internado e isolado no CTI. Dois dias depois fui entubado por que comecei a fazer uma relação de ventilação e perfusão baixa, muito abaixo do normal.

"É importante que os amigos contaminem as famílias com orações. Quando a pessoa volta pra casa e lê as mensagens, isso ajuda muito na recuperação emocional."

Entubado sem diagnóstico claro.

Isso. O primeiro Swab deu negativo. Só foi confirmado no segundo Swab, já internado e entubado. Então veja: na verdade não existe a doença. Existe o doente. E provavelmente muita gente adquiriu a doença mas não ficou doente. E esse é o grande problema do vírus. As pessoas assintomáticas são as maiores transmissoras da doença. Isso complica a disseminação.

E a gravidade dos casos então...

... isso depende muito do fator paciente, na sua reserva imunológica. É por isso que a gente ainda não descobriu por que tem paciente que fica em estado grave e tem outro que não fica. Mas fiquei internado e durante a internação você faz uso de muita medicação. Fiquei do dia 26 de abril até sete de maio. Doze dias internado usando bloqueador muscular, antibióticos, sedativos e esses remédios comprometem muito a memória.

"Você sair de uma CTI, onde você passou 30 dias, sem ver ninguém, sabendo que seu estado era grave, aí você vê aquele monte de gente que foi pra lá festejar você sair de alta, é muito comovente. Você tem que estar estruturado. Eu não tinha noção da corrente que as pessoas fizeram pra mim."

Do que você lembra?

Eu não lembro de nada que passei na UTI até o dia em que fui extubado, dia 7. Internei, no terceiro dia fui entubado, passei 12 dias entubado... a partir daí lembro. Não lembro nem quando me falaram que eu seria entubado, porque isso é um procedimento médico de rotina, avisar ao paciente. Quando você volta, eu não tive noção do que tinha passado, do tempo de internação, do período grave que passei, da oxigenação que desce e sobe, do açúcar... controle muito difícil... Meu irmão (doutor Lúcio Rabat), intensivista, foi meu anjo da guarda, por que neste período, ele ficava 20 horas por dia ao meu lado.

Como um profissional médico, uma pessoa que tem noção de como o vírus pode ter te atingido... você tem idéia de como foi contaminado?

Certamente adquiri o vírus no hospital onde dou plantão. Ele é de referência da Covid. Certamente peguei lá. A gente tem o costume de comer sanduíche à noite. Às vezes, pela intensidade do trabalho, o almoço passa batido. Então a gente pede um sanduíche no plantão. A equipe se reuniu para comer. A equipe toda pegou o vírus: dois cirurgiões, um ortopedista, um clínico. Só um se safou. O restante, todos pegaram e cada um respondeu de forma diferente.

"Minha mão não saía da parte lateral do corpo até a boca. Então tinha alguém para me dar comida na boca, fazer minha higiene íntima, bucal."

Você tinha noção da doença, dos efeitos dela, da situação que tinha passado?

Você não sabe da gravidade, das coisas que passou. Com o tempo você vai se adaptando e tendo informações. Mas, assim... o suporte técnico de onde fiquei foi de extrema importância. Médico, enfermeiro, fisioterapeuta, auxiliar de enfermagem, maqueiro, técnicos de radiologista, nutriocionista... nossa, esse povo faz uma diferença incrível.

Depois de extubado você ainda ficou sete dias na UTI...

... são dias terríveis. Você fica sequelado por conta da medicação. Minha mão não saía da parte lateral do corpo até a boca. Então tinha alguém para me dar comida na boca, fazer minha higiene íntima, bucal, e eu via o carinho destes profissionais com todo mundo que estava ali, incapacitado. Isso te leva a uma mudança psicológica, comportamental, que você não faz ideia. A maior mudança que essa doença me traz é passar a perceber a vida de uma outra forma. A linha entre vida e morte é muito tênue. Tudo pode mudar em um minuto. E isso é extremamente complicado para quem, por exemplo, nunca ficou doente. Descobri a importância que é uma palavra de conforto, de explicação com o que está acontecendo, você responder a ansiedade de quem não sabe o que está acontecendo. Tem que ter um profissional responsável para orientar a família. Ela precisa de informação e hoje ainda é muito falha. Me mataram duas vezes. Disseram que eu estava grave quando não estava e bem quando estava grave. Então o profissional para dar informação à família é de extrema importância.

"Quando você volta, eu não tive noção do que tinha passado, do tempo de internação, do período grave que passei, da oxigenação que desce e sobe, do açúcar... controle muito difícil."

Que conselho você daria sobre a necessidade de isolamento social?

Os protocolos mudam muito. Não me sinto com competência de dizer publicamente qual o melhor modelo. Só durante um mês, mudou muito comigo. De medicamento até a posição ideal na cama hospitalar muda. Ninguém sabe muita coisa sobre a doença. Pulo essa parte.

Mas não tem algo que possa dizer sobre isso?

O que sei é que depois que você volta para casa você tem dois tipos de doença a respeitar. Como no popular se fala, doença do queixo pra baixo e do queixo pra cima (risos). Do queixo pra baixo, voltei, mas existe fisioterapia para a volta dos movimentos. Com 10 dias já me sentia bem recuperado, com 15 muito bem recuperado. Hoje voltei a ser independente. Essa sequela física eu tive uma evolução bacana.  Agora, você fica numa fragilidade emocional enorme. É o tal do queixo pra cima. É muito complicado. Você fica muito vulnerável emocionalmente à demonstração de carinho das pessoas, por exemplo. Você sair de uma CTI, onde você passou 30 dias, sem ver ninguém, sabendo que seu estado era grave, aí você vê aquele monte de gente que foi pra lá festejar você sair de alta, é muito comovente. Você tem que estar estruturado. Eu não tinha noção da corrente que as pessoas fizeram pra mim.

"Fiquei do dia 26 de abril até sete de maio. Doze dias internado usando bloqueador muscular, antibióticos, sedativos e esses remédios comprometem muito a memória."

A diferença de curar e ser curado...

... Isso, 30 anos trabalhando para curar e depois que sai curado receber esse carinho. As pessoas que estão internadas... é importante que os amigos contaminem as famílias com orações. Quando ele volta pra casa e lê as mensagens, isso ajuda muito na recuperação emocional.

Como é acordar hoje?

Quem tem uma família estruturada faz muita diferença. Amigos fazem muita diferença. Até hoje recebo bolo, torta, homus tahine (comida de origem árabe. Rabat tem ascendência árabe), uma demonstração de afeto incrível. As mensagens que recebo me emocionam. Você não volta para casa curado de tudo. Você volta precisando de cuidados. Mas esse apoio ajuda. Mas preciso destacar: os detalhes pequenos quem resolve é a família.